Nesse post peço licença para trazer relatos de mulheres (relatos que mantêm o sigilo, retirados de uma pesquisa minha já publicada). Porque esse assunto vai muito além de apenas uma mulher, apesar de que às vezes ainda é necessário ao menos uma mulher para levantar a pauta.
Das histórias que não são contadas, talvez a do estupro seja uma das que mais doa. Um caso lembra um trauma de certa forma coletivo, o da sexualização, o de ser uma potencial vítima. Uma ferida aberta, que de tão escondida, de tanto não ser falada, continua sem ser tratada. Não falar do estupro permite que os casos que não chegam aos jornais continuem anônimos, às vezes sem sequer ter a possibilidade de serem narrados.
"Que assim, porque a história que contam pra gente é: andar de noite no meio da rua e ver um cara vindo na sua direção, ele te pegar, te levar para um canto, rasgar sua roupa e fazer o que quiser. E isso é uma des… Descrição de estupro. Mas, não, eu acho que o que eu passei se relaciona com isso também. Eu fui violada, estupro é uma violação."
-Participante Bêa
O conto de que a violência sexual têm um roteiro que beira o absurdo esconde a sua real história. Vítimas não são aleatórias, agressores não têm um perfil específico e os casos ainda são subnotificados. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, no Brasil:
88,7% das vítimas são mulheres
56,8% das vítimas são pessoas negras
82,7% dos abusadores são conhecidos da vítima
São, em média, 2 estupros por minuto
(Estimativa realizada pelo Ipea)
O estupro é uma violação, uma violação de corpos e de subjetividades. Ele envolve violência sexual, mas também física e psicológica. Essa é uma conversa sobre saúde mental. Os impactos psíquicos não cabem dentro de uma indenização ou de uma pena. Há ali algo que desconcerta, de tamanha intensidade que nem sempre é possível acessar. Trauma.
"E por incrível que pareça eu lembro de contar, mas eu não lembro da conversa toda porque parece que minha memória também apagou algumas coisas."
- Participante Tereza
Mas trauma, mesmo quando não é lembrado, ainda se faz presente.
"É uma coisa que meio que me persegue."
- Participante Joanna
"Eu acho que não falar é não ver, não, não se sentir parte de algo ruim assim, de algo dolorido."
- Participante Cecília
A questão é que quando a voz do agressor é privilegiada, se cria um caminho para que a narrativa de vítima seja questionada. E a dor do que aconteceu rompe as barreiras do tempo. Trauma ocorre no passado, é sentido no presente e vai para o futuro pela ameaça de que ocorra novamente. Esse processo envolve culpa, uma culpa que sustenta um lugar difícil de ocupar e que provavelmente nunca será totalmente simbolizado.
Existe algo irrepresentável dentro de tudo isso, devastador. Mas, quando a história de uma mulher é validada, talvez se dê um suspiro em gargantas historicamente intaladas pelas palavras que são impedidas de serem ditas ou que, quando ditas, são desacreditadas. Porque o trauma sempre fará parte da história de quem o sofreu, mas nunca irá reduzir tudo o que uma pessoa é. Então, peço licença, novamente, para terminar esse post com as mesmas palavras que finalizei minha pesquisa...
"Portanto, é necessário ouvir mais as mulheres, sem ultrapassar seus limites, sem sentir pena, sem procurar culpá-las, mas ouví-las como sujeitos de suas próprias vivências."


